
Tudo isto é bonito de se dizer, escrever e ler, mas na realidade nem sempre é assim. Será mãe uma pessoa que abandona o filho por esta ou aquela razão? Será mãe uma pessoa que quer ver o seu filho a não singrar na vida? Será mãe uma pessoa que ao passar pelo filho na rua não lhe diga "bom dia" ou "boa tarde"?
Terá alguém o direito de substituir uma mãe? Terá alguém direito a ser uma espécie de mãe para um qualquer filho? Tudo perguntas para as quais por vezes não temos respostas, não sabemos o que pensar e não sabemos o que fazer em dias que deveriam ser especiais para nós quando não temos a nossa mãe por perto, não por razões "divinas", mas sim por razões que nem nós próprios sabemos explicar.
No mais fundo de ti
Eu sei que te traí, mãe.
Tudo porque já não sou
O menino adormecido
No fundo dos teus olhos.
Tudo porque ignoras
Que há leitos onde o frio não se demora
E noites rumorosas de águas matinais.
Por isso, às vezes, as palavras que te digo
São duras, mãe,
E o nosso amor é infeliz.
Tudo porque perdi as rosas brancas
Que apertava junto ao coração
No retrato da moldura.
Se soubesses como ainda amo as rosas,
Talvez não enchesses as horas de pesadelos.
Mas tu esqueceste muita coisa;
Esqueceste que as minhas pernas cresceram,
Que todo o meu corpo cresceu,
E até o meu coração
Ficou enorme, mãe!
Olha - queres ouvir-me? -
Às vezes ainda sou o menino
Que adormeceu nos teus olhos;
Ainda aperto contra o coração
Rosas tão brancas
Como as que tens na moldura;
Ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
No meio do laranjal...
Mas - tu sabes - a noite é enorme,
E todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
Dei às aves os meus olhos a beber.
Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo as rosas.
Boa noite. Eu vou com as aves.
"poema à mãe" - Eugénio de Andrade, Os Amantes sem Dinheiro
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